“Áspero é o caminho do aprendizado. Muitas vezes, a única coisa que mantém o discípulo animado é a fé no mestre, em quem só agora reconhece o domínio absoluto da arte: com sua vida, dá-lhe o exemplo do que seja obra interior, e convence-o apenas com a sua presença.” (p.57)
O Oriente e o Ocidente já cruzaram seus caminhos ao longo da história em diversas oportunidades. Alexandre Magno, Marco Polo, as navegações europeias no século XV e o processo expansionista europeu que desencadeou o imperialismo no século XIX são marcos para tais encontros entre as civilizações de lá e de cá. Há, em função dos diferentes caminhos percorridos a parte pelos povos que constituem tais mundos, grandes diferenças culturais que celebram a diversidade humana. Os orientais, como chineses, árabes, indianos e japoneses, entre outros, criaram ritos, artes, religiões, gastronomia, literatura e tantos outros elementos culturais, muito específicos, característicos e particulares. A cultura de cada nação daquela região é extremamente peculiar, mas entre elas é comum o aprofundamento espiritual, que denota, em todas elas, guardadas as especificidades de cada uma, a busca da elevação em níveis que para os ocidentais, é difícil compreender e alcançar.
Eugen Herrigel, professor e filósofo alemão na virada do século XIX para o XX, interessado em elementos da cultura e espiritualidade japonesa, convidado a lecionar naquele país, para lá se mudou com sua esposa e buscou, ao longo do tempo em que esteve no oriente, entender a essência do Zen-budismo a partir do tiro com arco. Para isso se tornou aprendiz de um mestre nesta arte e, ao longo de um período de 5 anos, pelejou consigo mesmo para adentrar e compreender a espiritualidade aliada a ação do arqueiro, que transcende o ato físico e transforma toda a ação num movimento em que se integram arqueiro-arco-flecha-alvo e desaparecem as dimensões materiais do acontecimento para se consolidar o nirvana, ou seja, para que o Zen se consolide.
“…a cultura japonesa e o Zen estão intimamente ligados, de maneira que as artes japonesas, a atitude espiritual do samurai, o estilo de vida nipônico e até certo ponto sua moral, sua estética e sua postura intelectual estão fortemente impregnadas dos fundamentos do Zen.” (p.20)
Na descrição que faz ao longo de sua já clássica e venerável obra, Herrigen destaca o enorme esforço empreendido por ele para vencer as barreiras culturais que separam o pensamento oriental do ocidental. A leveza, a capacidade de concentração, o desprendimento do universo material, a apreensão do todo que se transforma em nada, a calma, o silêncio e alguns outros atributos próprios da cultura e forma de agir Zen, própria dos nipônicos, é descrita por ele, um iniciado e estudioso desta linha de pensamento e espiritualidade, como algo muito distante e complexo para a compreensão dos ocidentais. Não é impossível, inatingível, mas que custou a ele e, porventura a quem busca tal iniciação, um longo caminho de aprendizagem, estudos e compreensão até que seja possível chegar lá.
E o que nos separa do Zen?
A milenar cultura japonesa e a sua íntima ligação com a espiritualidade Zen permitem aos nipônicos uma natural integração aos valores e princípios que regem o Zen-budismo. Para os ocidentais, afeitos a uma cultura em que prevalecem outras prioridades e elementos, mais ligados ao mundo material, tanto no que tange ao que é externo quanto ao que lhe é particular e interiorizado, ou seja, no que se refere a seu próprio organismo e pensamento, desligar-se dos estímulos e fatores do mundo ao seu redor ou daquilo que sente em seu corpo é muito difícil.
Agregar seus movimentos, pensamentos e atitudes aos movimentos e a prática do tiro com arco passa por aspectos como a respiração, a tensão dos músculos, a postura corporal, a compreensão do espaço físico, a capacidade de se integrar com o arco e a flecha, a compreensão de que o ato como um todo não se restringe a atingir o alvo…
É muito mais complexo do que o olhar ocidental, que percebe o uso do arco e flecha como esporte ou como arma de combate e que, com isso delimita a arte em tudo isso compreendida pelos japoneses a ações rápidas e pontuais. O Zen-budismo busca concentração, magnitude que permita ao envolvido ir além daquilo que é óbvio e imediato, levando o arqueiro e o arco a tornarem-se, juntamente com os demais elementos, algo tão conectado e intrínseco, junto e misturado, que não se restringem somente ao lançamento do dardo.
É algo tão forte e impactante, espiritualizado e relevante para quem participa, literalmente, de corpo e alma, que implica uma fusão ainda maior pois ressignifica a existência e cria laços indissolúveis também entre o mestre e o aprendiz.
A ligação entre mestre e aprendiz é, igualmente, algo transcendente que nos auxilia a entender qual a profundidade das ações dos professores juntamente a seus alunos. Para quem realmente é mestre e professor naquilo que ensina, fica clara a força com que não somente as palavras e ensinamentos permanecem, mas como olhares, gestos, atitudes, presença e real comprometimento fazem na vida dos aprendizes.
“Um grande mestre, respondeu-me, tem que ser ao mesmo tempo um grande educador, pois para nós esses atributos são inseparáveis. Se o aprendizado tivesse sido iniciado com os exercícios respiratórios, jamais o senhor se convenceria da sua influência decisiva. Era preciso que o senhor naufragasse nos próprios fracassos para aceitar o colete salva-vidas que ele lhe lançou.” (p. 35-36)
“A arte cavalheiresca do arqueiro Zen” é uma pequena pérola na forma de livro pois, em linguagem acessível, traz ensinamentos preciosos captados pelo autor em sua experiência única de buscar a iluminação Zen por meio de uma de suas artes, o tiro com arco, no olho do furacão, ou seja, juntamente aos mestres destas artes, em seu país de origem, o Japão.
Para quem busca maior elevação e compreensão do mundo, visando uma integração real com o universo, é uma obra referencial e de cabeceira.