Quem aqui nunca se divertiu à beça com as traquinagens do menino Chaves? Interpretado pelo multiartista mexicano Roberto Gómez Bolaños, Chaves é uma série de TV mexicana que fez muito sucesso por aqui também, a qual narra as dificuldades e traquinagens de um garoto pobre na vila onde reside junto com seus amigos e vizinhos. Em um desses episódios, Chaves aprende uma operação básica de matemática com maçãs, mas quando as frutas são substituídas por outra para que se realize o mesmo cálculo, o garoto não consegue e reclama que sabia apenas realizar o cálculo com maçãs. Esse exemplo, apesar de apenas ilustrativo, assemelha-se a uma dificuldade que diversos professores enfrentam no dia a dia frente a seus alunos: por que a lógica do Chaves está tão presente nas salas de aula? Por que essa dificuldade em criar vínculos com o aprendizado em outras situações? Por que a grande dificuldade em abstrair?
Primeiramente, vamos falar um pouco sobre o poder de abstrair, ou seja, essa capacidade que possuímos de imaginar e conceber ideias muito além da significação literal do objeto. Esse significado mais literal do objeto é aquele mais representativo dentro da sua realidade. Por exemplo, a maçã é uma fruta, esse é o seu sentido mais literal possível. Mas a maçã, dentro de outros contextos, ou seja, em um sentido mais abstrato e contextual, pode ter outra significação: pode significar pecado ou fruto proibido (Adão e Eva), maldade ou envenenamento (Branca de Neve) ou até tecnologia e inovação (marca Apple). Esse sentido mais conotativo é único, subjetivo, pessoal e depende do contexto e repertório intelectual e cultural de cada um. Para que a maçã tenha esses diversos significados para um determinado sujeito, faz-se necessário que tenha ocorrido um contato prévio deste último com as situações anteriormente descritas, seja pela literatura ou pela sétima arte, por exemplo.
O repertório intelectual e cultural de cada pessoa depende de seu aprendizado e experiências que adquire durante sua jornada de vida. Estudos no final dos anos 70 feitos pelo cientista Roger Perry dividiam nosso cérebro em dois lados: esquerdo e direito. O lado esquerdo, mais lógico, e o lado direito, mais criativo, mais sensitivo. O lado mais lógico, mais intelectual, dependia do aprendizado mais técnico, escolar daquele conteúdo aprendido nas cadeiras escolares. O lado mais criativo era estimulado de acordo com o repertório cultural, ou seja, daquilo que experimentamos no nosso dia a dia, principalmente da vivência in loco: eventos artísticos, degustações culinárias diversas, viagens, enfim, tudo aquilo que apreendemos por nossos cinco (ou seis) sentidos. Estudos mais recentes, comprovados pelo neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, comprovam que os lados do cérebro são retroalimentados, ou seja, existe uma plasticidade cerebral nas experiências adquiridas, sejam de aprendizado mais lógico ou criativo, que servem de estímulo para ambos os lados do cérebro.
Abstrair, então, é uma competência que depende do aprendizado escolar e do nosso repertório de experiências que ficam armazenados na nossa caixa craniana, no nosso cérebro. E como podemos estimular o aprendizado escolar com experiências mais criativas? Como podemos tornar mais fácil para o aluno essa capacidade de abstração? Criar vínculos entre o conteúdo curricular e a realidade do aluno de maneira lúdica tem-se comprovado uma ótima estratégia. Marco Antônio Moreira, baseando-se em David Ausubel (1999), afirma que o conceito de aprendizagem significativa traz em suas abordagens “um processo por meio do qual uma nova informação relaciona-se, de maneira substantiva (não-literal) e não-arbitrária, com um aspecto relevante da estrutura de conhecimento do indivíduo” (2000). Ou seja, o repertório do aluno contribui para seus novos conhecimentos apreendidos com significado da sua realidade direta. A aprendizagem deve fazer sentido para seu contexto sócio-cultural e trazer para a sala de aula elementos que façam parte dessa realidade é imprescindível para que se inicie um processo de ampliação de repertório. O ensino das disciplinas, principalmente daquelas de cunho mais teórico, exige que os alunos aprendam experimentando por meio de seus sentidos, sentindo a textura, o som e o cheiro, por exemplo. Além disso, extrapolar os limites da sala de aula, quando possível, também contribui para seu aprendizado: passeios culturais, viagens, visitas a ambientes diversos envolvendo diversos contatos com a arte. Criar esses vínculos, por meio da experiência, envolvendo-os em ambientes criativos e com ludicidade favorecem sua capacidade de abstrair e dar novos significados aos elementos que compõem sua realidade. Temos diversos espaços culturais que podem contribuir para esse aprendizado: eventos e exposições, onde o professor pode servir de mediador entre a beleza estética e sua tradução do real, seja pela cor, pela forma ou pelo traço. Apresentações musicais, onde o som, o ritmo ou instrumentos podem trazer elementos de determinada cultura. Enfim, as possibilidades são enormes.
O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (1998) orienta que, “para que as crianças possam exercer sua capacidade de criar, é imprescindível que haja riqueza e diversidade nas experiências que lhes são oferecidas nas instituições, sejam elas mais voltadas às brincadeiras ou às aprendizagens que ocorrem por meio de uma intervenção direta” e que a “interação social em situações diversas é uma das estratégias mais importantes do professor para a promoção de aprendizagens pelas crianças”. Interação direta, seja com outros alunos, com o professor e com a arte. Dessa forma, as competências necessárias para o aprendizado das crianças serão cada vez mais fortalecidas e consolidadas, para que sua capacidade de aprender se torne perene e que o engraçado da lógica do Chaves se resuma apenas à divertidíssima série televisiva mexicana.