Banner com os escritos "Lima Barreto: Triste visionário" e um desenho autobiografico do escritor.

Cronista de seu tempo, observador atento do cotidiano, crítico arguto de questões sociais prementes e escritor de qualidade que teve o Rio de Janeiro e o Brasil da virada do século como seu cenário, Lima Barreto se tornou o tema do belíssimo livro de Lilia Moritz Schwarcz, “Lima Barreto: Triste visionário”, da Companhia das Letras.

Se personagens e cenários variados abundam nas linhas de Lima, ao longo de seus contos e clássicos, como Clara dos Anjos, O triste fim de Policarpo Quaresma, Memórias do Escrivão Isaias e tudo o que produziu ao longo de seu curto período de vida, é ele quem se torna, na obra de Schwarcz um fascinante personagem da vida real a desnudar o Brasil e sua história, assim como a demonstrar sociologicamente o país em seus primeiros passos como República e, ao mesmo tempo, livre da chaga da escravidão mas ainda carregadíssimo de preconceitos e repercussões socioculturais que pairavam sobre a população afrodescendente.

A obra de Lilia nos convida a ler Lima o tempo todo. Ele participa do livro não apenas como protagonista de uma obra em que se apresenta sua escrita e história pessoal, mas como coautor em determinados trechos pois a autora da biografia retoma trechos e ideias constantes em suas obras para elucidar o pensamento e traçar as rotas percorridas por Lima Barreto.

Ao iniciar a obra, por exemplo, buscam-se as origens familiares e descobre-se que o escritor carioca era neto de escrava que foi alforriada, mas que permaneceu vivendo e trabalhando com seus proprietários. Desta relação, por sinal, pontua Lilia Moritz é que surge a mãe do criador de Policarpo Quaresma, sem que isso, evidentemente, tenha sido registrado em cartório.

O nascimento da mãe de Lima tem, na documentação que atesta tal fato, somente o reconhecimento da maternidade, sem que o nome do pai seja ali identificado. Incorre que, prática comum a época, as intimidades entre senhores e escravas eram socialmente admitidas ainda que ocultadas e omitidas. Cabia as mulheres brancas a maternidade e os cuidados com a casa e o marido, sendo devidamente preparadas para as prendas domésticas e, também, alienadas ou sufocadas em relação as traições de seus maridos a ocorrer sob o mesmo teto com as escravas.

O que constituía um crime, o adultério, era então ignorado para fins sociais, de partilha de bens, de reconhecimento de ligação sanguínea e, mesmo, para manter as aparências e a estabilidade nos lares de então. Para os filhos destas relações promíscuas, em muitos casos, vinha o apadrinhamento, ou seja, a proteção do pai não reconhecido, como ocorreu com a mãe de Lima Barreto, o que lhes permitia uma vida melhor, com perspectivas que os a maioria dos escravos ou ex-cativos não teriam.

A mãe de Lima Barreto, por conta disso, teve a oportunidade de ser alfabetizada, não sofreu o preconceito de época relacionado a liberdade concedida aos recém-nascidos com a Lei do Ventre Livre, tornou-se professora e pôde, inclusive, abrir sua própria escola, na qual atuou como professora e diretora.

O mesmo tipo de benefício teve o pai do escritor, que contou com a proteção de poderosos da época para que viesse a se profissionalizar na área gráfica, em que teve êxito durante boa parte de sua vida e, com isso, conseguiu amealhar rendimento que lhe permitiu casar-se e desfrutar de conforto material.

A narrativa de Lilia Schwarcz desbrava de forma coerente, documentada, assentada em análise criteriosa da época tanto os acontecimentos específicos da vida da família Barreto quanto o contexto em que viveram e as consequências imediatas ou não de acontecimentos políticos de vulto para toda a população brasileira, como a criação das leis abolicionistas e a assinatura da lei Áurea pela princesa Isabel, coincidentemente promulgada no dia do aniversário do escritor, que então contava com apenas 8 anos de idade.

O que salta aos olhos é, então, a trajetória de um homem que cresce num momento de grandes e expressivas mudanças de cunho social e político no Brasil, como a própria libertação dos escravos e a proclamação da república no país.

Estes acontecimentos são pano de fundo da obra de Lima Barreto em suas obras, assim como a condição social diversa percebida pelo arguto observador do cotidiano que se revela em suas obras, a cada personagem, nas linhas ricas em detalhes que escreve e na crítica profunda que faz as evidentes diferenças que vê pelas ruas da capital do país, o Rio de Janeiro, a cidade em que viveu praticamente toda a sua vida.

A biografia de Lima trazida à tona por Lilia é valiosa pois detalha o nascimento de um escritor de vulto, cronista sem igual de um cotidiano que ao mesmo tempo que o fazia brilhar com seus textos, ainda que não devidamente reconhecido em seu tempo, demonstra a tristeza e o amargor de alguém indignado e sem reais perspectivas quanto ao surgimento de uma sociedade igualitária no Brasil.

Ser negro ou mulato em seu país, ter em sua ascendência as raízes afro, reconhecer-se pela pele como descendente de milhares de ex-escravos que, verdadeiramente construíram as bases do Brasil e que muito contribuíram com a cultura nacional sem que, mesmo após a abolição, tivessem qualquer reconhecimento ou, no mínimo, igualdade de condições para ter uma vida digna em terras nacionais era uma grande frustração para Lima Barreto.

Ler a obra “Lima Barreto: Triste visionário” nos coloca em contato com um fascinante brasileiro, escritor fabuloso, carioca da gema, afrodescendente orgulhoso de suas origens, apesar da evidente melancolia que a situação dos negros no Brasil, a despeito da abolição ou da república que muito prometeram e nada, ou quase nada, de fato fizeram para melhorar a situação dos ex-escravos no país.

Lilia Moritz Schwarcz, que já nos brindou com obras do calibre de “Brasil: Uma biografia” e “As barbas do imperador”, entre outros livros de qualidade, além de produzir outro livro de valor inestimável, em que prima por um texto inteligente, pesquisa profunda, análise de documentos e obras relacionadas ao tema, com esta obra sobre Lima Barreto permite ao leitor não apenas compreender o escritor e o contexto em que viveu, mas as bases do Brasil em que vivemos hoje. Um livro imperdível.

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