Mulher de óculos em uma sala de aula, olhando para tela de um computador

O século XXI chegou trazendo com ele uma série de mudanças no cenário econômico, social, tecnológico, cultural, político e educacional, sendo que um dos grandes responsáveis por essa ampla metamorfose, foi o processo de globalização.

No entanto, em que pese a presença de uma maior inclusão e respeito à diversidade decorrentes dessas recentes transformações, ao olharmos de maneira mais atenta para esse vasto e novo horizonte, notamos ainda a presença de um forte caráter discriminatório e excludente em relação à mulher, ao povo negro, ao povo indígena, às pessoas com deficiência, entre tantas outras minorias sociais.

Neste sentido, ainda que reconheçamos a importância de se analisar com maior rigor a situação de todas as supracitadas minorias, este artigo limitar-se-á a tecer considerações apenas ao lugar social da mulher ao longo desse tempo de grandes transformações, mais especificamente em relação ao campo da educação, apresentando alguns paralelos históricos e culturais acerca da profissionalização feminina no contexto da docência.

 

Elos históricos

Educação no Brasil colônia

Estabelecer um marco inicial para a história da educação brasileira é uma decisão arriscada, uma vez que há nesse percurso uma série de acontecimentos dinâmicos e multifacetados. Mesmo assim, é possível assumir com uma certa margem de segurança, o início desse processo no período colonial (1530-1750).

A chegada dos europeus no Brasil deu início a um longo período de exploração de recursos naturais e de “aculturamento” dos povos indígenas que aqui viviam. Para esse processo ser desencadeado, a corte portuguesa nomeou jesuítas e franciscanos, estabelecendo, portanto, em solo nacional, uma educação de caráter religioso.

Quando a coroa portuguesa chegou ao país, deu-se início ao molde atual de educação brasileira, uma vez que era preciso educar os filhos dos nobres, nas línguas, na matemática, na ciência, nas belas artes. Portanto, a gênese de uma educação como conhecemos hoje, estava direcionada para a formação de uma elite masculina, deixando excluída desse processo, as mulheres, até mesmo as da família imperial.

Naquele contexto, o processo educacional destinado ao público feminino, estava restrito à catequese, sendo que ele era voltado para o ambiente doméstico, cabendo à mulher, apenas o exercício da sua condição de esposa.

Nesse contexto, vale a ressalva de que o país já vivia o processo vergonhoso da escravidão do povo africano, e que apesar de haver no Brasil naquela época, um grande grupo de homens e mulheres trazidos à força da África para serem escravos nas fazendas de café, vale ressaltar que a esse público nenhuma educação era oferecida, somente o trabalho e a escravidão.

No que tange à educação da mulher, havia um processo educacional ocorrido fora do contexto escolar, baseado numa cultura excludente e estigmatizada. Os “conteúdos” que compunham o currículo de prendas domésticas eram fundamentados nos conhecimentos tradicionais da maternidade. O único tipo de educação mais formal, oferecido à mulher, era o de caráter religioso com o intuito de delimitar a dominação do corpo, dos gestos, enfim, do universo feminino.

 

Reforma pombalina e reflexos

O período que se estende de 1750 a1777, é conhecido como “pombalino” devido à expulsão dos jesuítas do Brasil, promovida pelo Marquês de Pombal, sendo uma época marcada por várias reformas em diversos âmbitos sociais, inclusive no educacional. Entre as medidas tomadas por Pombal, estava a transferência da gestão educacional da igreja para o Estado, e a inclusão das meninas na escola.

No entanto, apesar dessa inserção, a formação escolar da mulher ainda era orientada por princípios morais e religiosos, além de existir uma separação entre meninos e meninas.

Em que pese esse caráter separatista, a referida inserção possibilitou a entrada de mulheres no magistério, ainda que a mesma lógica separatista definisse que turmas femininas deveriam ser ministradas por mulheres e as masculinas por um professor homem.

Quando a família real chegou ao Brasil em 1808, preocupou-se com a formação de profissionais para o quadro do governo e do exército, percebendo de imediato a necessidade de universalizar os métodos de ensino em todo território nacional. Nessa direção, tomou a decisão de criar as primeiras escolas de formação de professores, regulamentando-a por meio do decreto de 1ª de março de 1823, que, de maneira geral pretendia traçar instruções para os militares e professores, porém restritas ao público masculino.

No entanto, embora na referida lei existissem pontos claros sobre a exclusão da mulher, havia, também, avanços na regulamentação da profissionalização docente, que levavam em conta a igualdade salarial entre professores, independente do sexo, porém, observada a aprovação em um concurso público.

No conteúdo do decreto de 27 de agosto de 1831 ficava explícito que os salários previstos em lei somente seriam pagos para professores habilitados nas matérias de ensino indicadas na Lei Geral, por concurso. Os governos provinciais estavam assim autorizados a contratar candidatos não aprovados caso não houvesse nenhum aprovado, com a condição de perceberem salários menores. Assim, como não havia escolas de formação para o sexo feminino e não eram ensinadas todas as matérias nas instituições femininas de primeiras letras, fica fácil a dedução de que as candidatas contratadas ganhavam menos que os docentes do sexo masculino.

Além disso, a legislação ainda mencionava alguns requisitos mínimos para aprovação da mulher em um concurso, entre eles: ter certa idade, ser autorizada pelo pai, se solteira, ou pelo marido, quando casada, viúvas deveriam apresentar a certidão de óbito do marido, mulheres que porventura fossem separadas deveriam justificar tal situação, devendo comprovar ter conduta honrada. Importante frisar que em relação aos homens, não havia nenhum requisito expresso em lei, revelando, assim, a descriminação da mulher na sociedade, o que era explicitamente reforçada pelos documentos legais.

 

A mulher professora no contexto da revolução industrial

O século XIX foi influenciado pela revolução industrial, que com a mudança do modo de produção manufaturado para o mecânico, promoveu a ascensão do capitalismo e profundas mudanças na dinâmica do funcionamento da sociedade.

A população rural começa a se deslocar para as cidades, favorecendo a captação de homens e mulheres para o manuseio das máquinas, o que provocou a necessidade de qualificar esse público em relação à aprendizagem das letras, da matemática e das ciências, dando origem assim, à educação popular.

Nessa direção, a educação do povo possibilitou o acesso de muitas meninas para a sala de aula, o que provocou a necessidade de contratação de professoras, fato que era decorrente da política separatista que vinha da época histórica anterior.

Assim, começa a ocorrer uma mudança nesse cenário, pois em 1870 surge a primeira escola mista de meninos e meninas, ainda que prevalecesse a ressalva das professoras lecionarem apenas para meninos maiores de 14 anos de idade.

Ainda durante o século XIX, ocorre o avanço da ciência e tecnologia, sendo que no campo científico a Psicologia surge produzindo uma gama de conteúdos novos que influenciarão sobremaneira a educação, tratando-se das teorias da aprendizagem.

Nesse sentido, com o avanço das pesquisas, o pressuposto de que mulheres eram mais aptas ao exercício da docência por força de uma suposta vocação, começou a perder força, sendo que o magistério passou a partir de então a ser exercido por ambos os sexos.

No entanto, apesar desse início de mudança nesse cenário, vai surgindo e ganhando força um outro pressuposto, o de que homens são mais afeitos à docência das ciências “duras” (matemática, física, química, biologia), e mulheres mais próximas “naturalmente” das ciências humanas (letras, história, geografia, pedagogia, entre outras).

Isso fica evidente quando se analisa o campo de atuação docente, que tem nas diferentes etapas da educação básica, a presença maciça de mulheres nas escolas de educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental, tornando a mulher um ser próximo da maternidade e do parentesco (no caso as “tias”), como são chamadas pelas famílias dos estudantes desde a creche.

Outrossim, além do aspecto “vocacional”, é perceptível também no âmbito acadêmico das Universidades que oferecem graduações de formação para a docência, a prevalência de graduandos homens nas áreas das ciências “exatas” e de graduandas mulheres nas áreas das ciências humanas e Pedagogia, sendo que prevaleceu por muito tempo nesse contexto, o discurso separatista entre as docentes da educação infantil e “primária” e os docentes da educação “secundária”, que supostamente estariam mais aptos a ensinar conteúdos de natureza científica.

Ainda que atualmente esse cenário venha se modificando em função do avanço das pautas feministas no seio da sociedade, sendo que tensões e rupturas vêm sendo travadas no interior desse espaço, tornando-o cada vez mais heterogêneo, fica evidente que o percurso profissional da docência feminina, é historicamente marcado por desafios e grandes barreiras sociais e culturais.

 

A   consolidação da docência como profissão feminina

O atual contexto da docência vem sendo fortemente influenciado pelo pensamento neoliberal, trazendo a ideia de gestão educacional para além das paredes do gabinete do diretor da instituição, ou seja, buscar a eficiência e qualidade educacional demonstrada pelos índices nacionais e internacionais, passou a ser dever de todos os que atuam na escola.

A LDB 9394/96 trouxe a incumbência docente de participar da gestão democrática da educação, exigindo inclusive que professores e professoras participem da elaboração do Projeto Político Pedagógico da instituição, como forma de promover uma maior integração entre a escola e as famílias dos estudantes.

Nesse caso, uma decorrência direta é uma participação mais acentuada das professoras em relação a essa integração, principalmente na etapa da Educação Infantil, uma vez que o aspecto maternal se relaciona mais adequadamente ao universo feminino do que ao do masculino.

Além da LDB, um pouco mais à frente (1998), as Diretrizes Curriculares Nacionais da educação básica trouxeram a obrigada de fazer à instituição escolar, da indissociabilidade entre o educar e o cuidar, o que mais uma vez reforça a predominância do aspecto maternal na educação de crianças e adolescentes, aproximando mais ainda a mulher da tarefa docente.

Nesse sentido, a escola como ambiente que cuida, alimenta, ama e educa, é reforçado pela legislação educacional e pelos projetos curriculares propostos pelas lideranças governamentais.

Assim, surge nesse contexto e vai ganhando força, a ideia da mulher educadora, aquela que traz a luz do conhecimento capaz de iluminar os caminhos do educando rumo à construção da sua moral e edificação do seu caráter.

 

A docência feminina e a desigualdade salarial

Ao se analisar a evolução histórica da inserção crescente da mulher no mercado de trabalho educacional, vale  ressaltar que apesar de o magistério ter se constituído como um reduto feminino, o trabalho não está livre das discriminações que ocorrem sobre a mulher trabalhadora nas demais ocupações: a primeira delas é a concentração de mulheres nos degraus inferiores da pirâmide ocupacional, tendo um crescente declínio de prestígio e de salários, quando comparados com o universo do profissional masculino.

Como apontado anteriormente, a história da profissionalização da docência feminina, mostra que o conceito de vocação foi gradativamente aceito pelos próprios educadores e educadoras, que justificavam que, uma vez que a escolha de carreira era mais adequada à natureza feminina, atividades que prescindiam de emoção, dedicação e paciência tinham mais a ver com o perfil feminino.

Tendo como pressuposto que o ser humano tem aptidões inatas para certas profissões, o conceito de vocação foi um dos mais eficientes na indução do público feminino na escolha das profissões menos valorizadas socialmente. Sendo fortemente influenciada por essa ideologia, a mulher deseja e escolhe essa profissão por acreditar que tem vocação.

Um outro ponto que justifica a escolha do magistério pelas mulheres, é o fato desse ser retratado como uma atividade profissional que permite conciliar a carreira com as tarefas domésticas. Nesse sentido, a possibilidade de impor um ritmo próprio e uma certa flexibilidade de horários permitem à mulher uma conciliação entre as tarefas de   dona-de-casa e a de educadora.

Nessa direção, indicada ainda por alguns estudos, uma outra justificativa para a escolha da docência, apesar das condições precárias de trabalho e carreira, seriam algumas vantagens oferecidas para a atuação profissional no setor público, pois além da estabilidade e outros benefícios, profissionais da educação praticamente não sofrem (em tese) controle de qualidade sobre os produtos gerados por seu trabalho.

Além disso, o setor público é atraente porque servidores enfrentam menos competição do que no setor privado.

Enfim, o discurso veiculado pela mídia de que o salário feminino pode ser inferior ao masculino devido ao seu caráter secundário ou complementar, contribuiu para consolidar a ideologia de que o magistério é a ocupação ideal para o público feminino, e foi muito útil para a precarização da carreira docente, devido à crescente deterioração salarial que historicamente vem atingindo a categoria.

 

Conclusão

Ao considerarmos aspectos históricos da inserção da mulher na carreira docente, com as variáveis que cercam os desafios que ela se depara ao tomar decisões sobre sua vida e carreira, as razões que as justificam, bem como análises mais detalhadas a respeito da complexa relação entre o lugar social de mãe e educadora, poderia nos auxiliar numa avaliação mais completa e assertiva sobre a relação da professora com os alunos e de sua atuação profissional de maneira geral.

Uma vez que a condição histórica feminina justifica o discurso vigente sobre sua suposta “vocação” e que ele deixa veladas as condições reais e concretas sob as quais a prática pedagógica ocorre, talvez tecer considerações acerca das relações de gênero, possa ser útil para uma melhor análise do magistério feminino.

Em que pese o fato do magistério ser uma profissão historicamente desvalorizada justamente por assumir acentuado caráter feminino, existe uma certa incoerência por parte das professoras em relação à discriminação das meninas em sala de aula, ou seja, no que tange às questões de gênero, a docente acaba contribuindo para reforçar a discriminação sobre as meninas, reproduzindo assim as desigualdades, o que acaba por manter o padrão de submissão das meninas em relação à postura autoritária dos meninos.

Nesse sentido, é mister um programa de formação docente continuada que possa contribuir para uma maior conscientização das professoras a respeito dessa realidade, ou seja, a mulher que educa, precisa ser educada numa outra perspectiva, a fim de que supere a condição de oprimida e desenvolva uma prática pedagógica mais libertadora.

Assim, à medida em que tomar consciência de que o magistério não é uma vocação ou um “chamado” divino, e sim de que ele é uma profissão como qualquer outra que demanda uma consistente formação teórica, científica,  disciplina, competência técnica e espírito de classe, a mulher professora perceberá que a ela são negadas historicamente condições decentes de trabalho, remuneração justa e respeito à sua condição de profissional da educação.

Nesse sentido, a tomada de consciência de sua condição submissa de gênero poderá contribuir para que a docente considere a importância do seu papel social como agente não apenas reprodutor, mas principalmente transformador, no âmbito de um cotidiano realista de escola que cumpre de fato a sua função social.

Outrossim, em que pese a crescente burocratização do processo de ensino, principalmente em termos da exigência da implementação da gestão democrática, a professora ainda detém, nos limites de sua atuação prática em sala de aula, uma relativa autonomia na formação dos futuros cidadãos.

À semelhança de uma mãe, no contexto da vida cotidiana da família, a professora no cotidiano da escola, pode agir como um agente assertivo no processo de transformação social, localizando nas brechas dos projetos curriculares e na legislação, caminhos para a promoção de mudanças, incluindo-se aí o início do questionamento sobre as desigualdades sexuais.

Leia também: Como trabalhar a igualdade de gênero com os alunos na escola?

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