Suas vestes lhe davam a aura de mestre. Os óculos tornavam sua aparência ainda mais próxima da ideia que as pessoas têm de um sábio. Andava para lá e para cá sempre com expressões em seu rosto que davam a entender que estava a pensar com profundidade. Os livros eram companheiros aparentemente inseparáveis. Quando entrava numa sala de aula gastava os minutos iniciais de suas preleções a repetir frases e pensamentos de grandes nomes da ciência e da filosofia para deixar claro que fazia parte deste seleto e restrito clube de intelectuais.
Tinha resposta para tudo. Nada lhe era desconhecido. Todas os saberes estavam ao seu alcance. Os alunos tinham em relação ao mestre sentimentos um tanto quanto antagônicos: ao mesmo tempo que o admiravam por sua sabedoria o temiam por sua imprevisibilidade. Em determinados momentos era simpático e a todos atendia com o máximo de presteza. Em outros se mostrava arredio, fechado, misterioso. Essa dualidade fazia com que ele fosse as vezes “médico” e, por vezes, “monstro”.
As explanações que dava mostravam ou faziam com que aparentasse aquele tal saber infinito que somente os grandes mestres possuem. Suas explicações, no entanto, muitas vezes eram obscuras e difíceis de entender. Quando questionado quanto a isso dizia que faltava aos alunos capacidade para acompanhar seu raciocínio, que aqueles meninos e meninas eram ainda muito verdes, imaturos e despreparados. O tempo, sim, este lhes garantiria a possibilidade de algum dia se aproximar da grandeza deste mestre intocável, invencível e imortal.
Era um homem da ciência, com douto saber, capaz de falar para homens de elevada inteligência e por eles ser admirado, venerado e consagrado. Já fizera isso, conforme relatara inúmeras vezes. Ganhara fama por ser um debatedor como poucos, praticamente invencível no duelo de argumentos. Dos pupilos nem mesmo admitia que questionassem suas respostas ou explicações. Eles não tinham ainda conhecimento de mundo suficiente para tanto.
Este mestre que tantas letras e experiências vivenciara era, no entanto, um farsante. Como o pedinte que nas ruas da cidade simulava deficiência e doença incuráveis para que lhe entregassem moedas e assim garantissem a ele o pão de cada dia, este mestre era tão ou mais ignorante que seus ouvintes. Viera de outras terras e lá aprendera por observação que os sábios falam de tudo e de todos assumindo sempre ar de quem tem plena propriedade sobre qualquer tema.
Vira que cientistas e filósofos se debruçavam sobre livros e que isso lhes granjeava enorme apreço e popularidade perante os demais membros da comunidade. O que eles falavam de tal monta e complexidade era que poucos realmente conseguiam acompanhar seus raciocínios elaborados. Viu como se vestiam, portavam e dirigiam palavras aos demais e pôs-se a copiá-los para que pudesse parecer-se com eles. Quando julgou que passaria com facilidade perante qualquer pessoa como um daqueles homens de letras andou por léguas e léguas até que ninguém mais soubesse quem era, de onde viera, o que realmente vivera…
Entrou numa cidade que aparentava prosperidade material mas que carecia de verniz intelectual e logo se apresentou como homem de saber sem igual, capaz de ensinar e enriquecer tão formosa terra. Aos poucos foi conquistando as pessoas com seu jeito refinado que contrastava com a rudeza dos homens simples do campo que ali viviam. Fixou moradia, abriu a porta de sua casa para que as crianças da localidade pudessem aprender com ele, pôs-se a frente do populacho para falar sobre coisas do céu, da água e do ar. Até nas missas desandou a pregar os conhecimentos nos quais se dizia mestre.
E os anos passaram. Seus cabelos foram ficando cada vez mais brancos. Os óculos que outrora apenas serviam para dar-lhe um ar mais digno e adequado ao papel de professor que por tanto tempo encenara agora eram muito necessários. Como poucos realmente sabiam alguma coisa naquela terra e, conforme ditado popular nos ensina que caolho em terra de cego é rei, passara incólume, sem qualquer questionamento mais duro e investigação de fato que lhe tirasse a aura de sábio perante os cidadãos do vilarejo.
Sua farsa lhe garantira respeito mesmo com a constatação de que aqueles que havia ensinado apenas se tornaram, como ele, meros repetidores de ditos e saberes professados de forma parcial, a repetir o que outros haviam pensado. Não tivera nunca competência para ele mesmo superar-se e aprender, tornar-se altivo, capaz de articular-se por contra própria, preparado para formular teorias e argumentos originais. Menos ainda para que naquela terra de férteis solos, além da farta colheita que a todos alimentava, pudesse também nascer algum sábio, algum mestre verdadeiro.
Como mestre ignorante, tendo como única e real motivação os vinténs que conseguia de seus concidadãos e não a aprendizagem e o conhecimento pleno a se disseminar entre as jovens cabeças que lhe eram confiadas, fez apenas com que eles perpetuassem sua farsa, com seus pupilos a se tornar, depois de sua morte, também alguns deles, tão mestres ignorantes quanto seu tutor…
Obs. Tomo emprestado o título “O mestre ignorante”, de obra escrita pelo francês Jacques Rancière.